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sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Consensualidade e abuso

Caso encontre algum termo desconhecido, recomendo a utilização do meu Glossário BDSM, que está dividido em 2 partes (vide links a seguir): Parte 1 e Parte 2.

Se você é mais detalhista, deve ter percebido que surgiu um novo botão na coluna aqui ao lado ------------------------------------->

Como todos sabem, a situação tá braba e escrever textos gasta um bom tempo (alguns podem levar mais de uma semana!) Então, se você gosta do blog (e acha que eu mereço), pode fazer uma doação e me ajudar a continuar postando e trazendo conteúdo de qualidade.



Recentemente veio à tona um relato de abuso por parte de um grande nome do shibari internacional. Debates infinitos surgiram a partir deste relato, bem como diversas acusações sobre a mesma pessoa e sobre outros. A comunidade internacional do BDSM, especialmente ligada às cordas está em polvorosa e uma discussão tremenda se mantém numa dicotomia do "calma, veja bem" X caça às bruxas". Isto me alertou para o fato de que consentimento é algo ainda bastante repetido, mas pouco debatido no nosso meio e, por mais que quase ninguém todos tenham uma boa noção do que isso significa, as opiniões sobre como se obter e dar consentimento, bem como mantê-lo e retirá-lo, são absurdamente discrepantes.

É bastante comum - e bem fácil de notar - atos de quebra de consentimento em festas, onde um indivíduo importuna constantemente outra pessoa para que alguma prática seja feita. Aqui no RJ, podólatras são alvos constantes de reclamação quanto à isso, tanto por Tops quanto por bottoms, e a própria comunidade podo sabe disso e os que são sérios e respeitam o consentimento costumam (ou pelo menos tentam) afastar os pentelhos do meio. Mas, infelizmente, isso não é exclusividade dos podos e pode ser notado em Tops e bottoms em grande quantidade.

Provavelmente alguém que você conhece, ou até mesmo você que está lendo, pode ter cometido alguma quebra de consentimento (espero que) sem querer.

Que os deuses nos ajudem. Vamos lá?


O QUE É?


Segundo o Dicionário Priberam

con.sen.ti.men.to
(consentir + -mento)
substantivo masculino
1. Ato ou efeito de consentir.
2. Manifestação que autoriza algo. = AUTORIZAÇÃO, LICENÇA, PERMISSÃO
3. Manifestação a favor de algo ou alguém. = ADESÃO, ANUÊNCIA, APROVAÇÃO
4. Tolerância.
5. Acordo ou conformidade de opiniões (ex. mútuo consentimento). = CONSENSO
6. Ordem

con.sen.tir
verbo transitivo
1. Dar Licença
2. Permitir.
3. Tolerar.
4. Admitir. 
verbo intransitivo
5. Dar consentimento.
6. Concordar.
7. Anuir.


No BDSM, consentimento é o ato de uma pessoa permitir que uma outra pessoa tenha ações ou relações de algum tipo com ela.
É um acordo expressivo e indubitável entre as partes quanto às ações, termos e condições do que será (ou poderá) ser feito. Em grande parte do mundo e em basicamente todas as instâncias, consentimento é a barreira que separa liberdade pessoal de atos passíveis de punição legal.

Consentimento Informado é algo bastante falado também. O termo é baseado na medicina atual, onde um paciente, sendo detentor dos direitos sobre o próprio corpo, informa, através de assinatura, em um documento, que autoriza que um ou mais procedimentos sejam feitos. No BDSM, o consentimento informado pode ocorrer tanto verbalmente quanto na forma escrita, no famoso contrato de negociação.

No consentimento informado, pressupõe-se que a autorização (para que práticas X ou Y sejam feitas) é mediante informação e conhecimento sobre tudo aquilo que pode decorrer da prática, incluindo seus riscos e possíveis sequelas. No baunilha, estados mentais alterados ou incapacitados impedem que o consentimento seja aceito, sendo este requerido de um parente próximo ou responsável legal. No BDSM, podemos considerar que uma pessoa sob forte influência de álcool e entorpecentes não tem a capacidade completa de oferecer consentimento completo, assim como quem tenha alguma condição mental/psíquica que seja restritiva (e, portanto, é mais inteligente evitar práticas com quem esteja nessas condições).

Um conceito relativamente pouco explorado, mas que ocorre subconscientemente, é o de Consentimento Contemporâneo, que trata do quando o consentimento foi dado e de que maneira é retirado. Legalmente, quando alguém diz "chega!", "pare!", "não", o consentimento foi retirado e, qualquer coisa além disso, se torna algum tipo de abuso, sendo o parceiro obrigado a interromper imediatamente a prática. No BDSM, dada a natureza conflitante das relações e das práticas com o modus operandi "normal", estas palavras costumam não ter este efeito e são substituídas por safewords. Além disso, este conceito vai de encontro a conceitos de TPE e Não-consentimento Consensual (o ato de dar consentimento prévio para uma prática onde as reações serão de fuga, desespero ou tentativas de evitar, como Rape play, por exemplo).



Importância do Consentimento e da Comunicação


Consentimento e comunicação são importantes por alguns fatores. Um deles é a chance de vivenciar uma experiência agradável desejada por ambas as partes.
Outro fator é que ninguém reage à dor, torções, privações, ou até mesmo a palavras da mesma forma que o outro. Uma situação insuportável para alguém pode ser a fagulha que incendeia a floresta dos prazeres de outra pessoa.

Quando as informações verbais são omitidas, é muito fácil para a outra pessoa cometer um erro e ultrapassar limites desconhecidos e desrespeitar o consentimento.

Mas e o consentimento implícito? Ele existe, pô!
Sim, existe. Mas é necessária uma enorme quantidade de tempo e conhecimento mútuo antes de presumir que aquela pessoa deseja que alguma coisa aconteça ou que pare de acontecer. E, ainda assim, interpretações erradas podem ocorrer. Seu parceiro pode estar num dia ruim, ter dormido mal, ter se alimentado mal/ter comido demais, se for mulher, pode estar na TPM, menstruada, pode estar em uma flutuação hormonal aleatória, enfim, dúzias de possibilidades que alteram o estado físico e mental, e tudo isso pode mudar a sensibilidade e as reações daquela pessoa naquele dia.

No consentimento implícito é bem comum presenciar uma dupla ou um casal de longa data que não sente a necessidade de pedir permissão para se tocarem ou se beijarem, mas isso vem de um longo processo de discussão e conversa, onde este consentimento constante foi dado. 

No entanto, presumir um consentimento implícito com parceiros casuais pode ser extremamente problemático, visto que o consentimento que foi dado ontem pode não ser válido para hoje ou amanhã.



Até onde a humanidade sabe, ninguém é realmente capaz de ler pensamentos de outras pessoas, então respeite a si mesmo e aos outros, e não coloque ninguém - ou não deixe te colocarem - em uma situação de desconforto real, ou em uma experiência indesejada.

Chacrinha já tinha dado o recado há muito tempo atrás.


Por que pedir consentimento?


Partindo do ponto de que o consentimento é de extrema importância para o bom andamento de um relacionamento (ainda que este dure apenas alguns minutos), obter o consentimento explícito daquela pessoa é a garantia de que, pelo menos até certo ponto, você poderá praticar com ela. Ou você é o Professor Xavier e sabe o que ela quer ou não?


O único cara que sabe se ela quer mesmo ou não.
(Eu sei que tem outros, mas você me entendeu)



Como pedir o consentimento?


Esta é a hora crucial. Você já sabe tudo sobre consentimento, sabe fazer super bem as suas práticas, deu de cara com aquela pessoa e...! Como você vai abordá-la(o), e/ou agir mediante uma abordagem e propor fazer uma prática com você? Bom, particularmente, essa é provavelmente, a parte onde eu mais falho. Sempre fui péssimo em abordar alguém, pelo motivo que fosse. Nunca fui bom sequer em chegar em alguém na noitada. Sinceramente, não entendo como não sou BV até hoje, porque, se eu chegasse em mim, me dava um toco. hahahahahahhhaaha

Mas enfim, vamos deixar esse detalhe trágico da minha vida pra lá e vamos à maneira ideal de abordagem, conversa e negociação de uma prática com alguém.

Sr. FoDom é pica das galáxias em Escolha-Sua-Prática-Ideal-Play (vamos chamar de ESPIP pra facilitar).
SubEntendida gosta bastante de ESPIP e sempre achou o Sr. FoDom muito interessante.

Aqui nós veremos como a SubEntendida vai pedir pra praticar com FoDom, mas a conversa serve pro lado contrário tb. 


S: Olá, Sr. FoDom, podemos conversar um pouquinho? 
F: Claro! o que deseja?
S: Eu estava observando [insira pronome de tratamento preferido] ali e gosto muito do seu jeito de fazer ESPIP. 
F: Ah, obrigado!
S: Então... Eu adoro ESPIP e me disseram que você é muito bom nisso. Eu estava pensando se seria possível vc fazer ESPIP comigo... 
F: Podemos sim, mas precisamos conversar antes sobre alguns detalhes pessoais, tudo bem pra você? 
S: Claro! 
F: Você tem ciência de que ESPIP pode causar [insira todos os riscos possíveis e imagináveis da sua prática escolhida]? 
S: Sabia disso e disso, mas daquilo e daquilo outro eu não fazia ideia! Mas confio em você e topo correr esse risco.  
F: Você faz uso de alguma medicação? 
S: Só [nome-estranho-ina] para [blablabla], mas já uso há X tempos e meu organismo está acostumado Então, sem problemas pra ESPIP. 
F: Ah, que bom! 
F: E você já teve algum acidente, alguma lesão, fratura? Sua pressão é estável? [Insira todas as perguntas de saúde necessárias, por mais irrelevantes que pareçam] 
S: Eu quebrei a perna bem aqui, ó. Há uns 10 anos atrás. Minha pressão é estável, mas se eu não comer por muito tempo, ela cai fácil. Eu tenho alergia a [X, Y, Z] e to com uma dorzinha aqui no pescoço, pq dormi meio mal essa noite. 
F: Entendi. Bom, a fratura provavelmente já cicatrizou bem... 
S: Já sim! Eu até faço aulas de jump na academia sem problemas! 
F: Ah que maravilha! Então vamos ver... Você trouxe seu anti-alergênico? 
S: Sim, está ali na minha bolsa. Posso pegar se quiser. 
F: Não precisa pegar não. Essa dorzinha no pescoço pode ser um problema, mas podemos fazer ESPIP de um jeito mais light pra evitar essa região. 
S: Oba! 
F: Você se alimentou bem hoje? 
S: Sim! Lanchei umas 2 horas atrás. 
F: Ok. Eu gosto de praticar ESPIP de um jeito [sensual, erótico, bruto, impessoal]. Tudo bem pra você? 
S: Claro! É por isso mesmo que quero fazer ESPIP com o senhor! 
F: Ótimo! E tem alguma coisa que eu não posso fazer, ou algum lugar que não posso tocar? 
S: Não, pode tocar onde quiser. Eu só gostaria de ficar pelo menos de calcinha.  
F: Perfeito! Eu estou pensando em começar fazendo X e daí vamos vendo como a coisa flui e vamos conversando durante a prática pra ver se progredimos ou não, tudo bem pra você? 
S: Melhor impossível! 
F: Tem alguma safeword preferida ou podemos manter o clássico amarelo e vermelho? 
S: O clássico está ótimo. 
F: Beleza! Vamos lá então? 
S: Vou só fazer xixi e encontro o senhor ali na área da prática, tudo bem? 
F: Ok, estou te esperando!


É um tanto quanto óbvio que duas pessoas provavelmente não teriam uma conversa dessas em uma festa. Eu mesmo nunca tive e, até onde sei, não conheço ninguém que tenha tido.

Normalmente, uma conversa prévia minha, em relação ao shibari, por exemplo, envolve:


  • Saber se a pessoa já conhece a prática e/ou se já experimentou antes;
  • O que gostaria de experimentar comigo;
  • Até que ponto prefere estar despida ou não;
  • Dependendo da amarração, onde posso ou não tocar e/ou brincar/estimular;
  • Se bebeu ou usou alguma droga antes da prática;
  • Às vezes questiono sobre lesões, às vezes não. Geralmente, lembro de perguntar caso haja algo que me faça lembrar disso (cicatriz, movimentação diferente, hematoma, visual diferente do comum, etc.) 

Acho que podem ver que faço uma investigação superficial bem razoável, que leva menos de 5 minutos. Ainda tem falhas? Sim. Muitas vezes acabo omitindo ou esquecendo de perguntar alguma coisa. Mas isso é algo que tenho trabalhado comigo mesmo pra melhorar.

Como disse ali em cima, esta seria uma situação ideal, onde duas pessoas perfeitamente conscientes de suas capacidades, gostos, problemas e habilidades, tendo uma conversa rápida sobre uma prática que desejam fazer juntos.

Creio eu, que se todas as cenas feitas em festas tivessem passado por, pelo menos, metade dessa conversa, muitos problemas teriam sido evitados.
Obviamente, diversos detalhes foram deixados de lado na conversa e estes vão depender da ESPIP. Caberá a ambas as partes terem conhecimento do que aquela prática requer como condição de segurança e questionar e avaliar as respostas para ir em frente ou não.

Então, siga o exemplo do Sr. FoDom e da SubEntendida, e tenha uma conversa minimamente detalhada antes da sua próxima cena ou prática com alguém desconhecido/pouco conhecido. E cobre isso da outra pessoa também. Se ela não se incomodar, provavelmente ambos terão momentos muito bons depois. Se se incomodar, já é um sinal de que não vale a pena...




Como não burlar o consentimento



Agora você fez tudo certinho, conversou combinou tudo bonitinho e tá indo fazer aquela cena linda, maravilhosa e fuderosa com aquela pessoa delicinha dos seus sonhos. Como garantir que você não vai fazer uma cagada "felomenal" e destruir tooooodo esse trabalho que teve até então?

Consentimento é uma coisa que é dada, mantida e quebrada ou retirada. Nosso objetivo agora é manter e não quebrar e, se fizermos tudo direitinho, provavelmente não será retirado. Então vamos lá.

Como em todos as instâncias da vida, começar muito rápido numa prática BDSM nunca dá certo. Então COMECE DEVAGAR E SUAVE. Aproveite o começo da cena pra ir estabelecendo, na prática, os parâmetros discutidos anteriormente com seu parceiro.
Use o começo da cena para criar uma conexão e avaliar o comportamento dele(a).

Conforme vai avançando na cena, vá perguntando sobre as sensações, e aproveite para trazer os estímulos verbais pro jogo também.

Agora a cena está pegando fogo, várias coisas estão acontecendo, várias sensações e respostas do corpo explodindo dentro de cada um. Mantenha a calma e o foco. Perder a mão aqui é muito fácil e pode trazer problemas sérios para ambos.
Daqui, podemos seguir para dois caminhos distintos:

1- Tudo fluiu bem, o clímax da cena veio, e a mesma acabou ali ou foi baixando até acabar na calmaria, ou;

2- O bottom pediu a safe/deu o sinal de que algo estava errado e precisava parar. Isto nos leva a 2 novas possibilidades:

a) Você interrompeu a cena na mesma hora e foi ver o que houve. E partiu pro aftercare;
b) Você não interrompeu a cena imediatamente.

No item 1, tudo correu bem e o consentimento foi mantido com sucesso. A pessoa pode - ou não - querer fazer uma cena com você novamente no futuro, por diversos motivos diferentes, mas, pelo menos na questão do consentimento, você sabe que não cometeu algum erro. 

No item 2-a, algo de errado aconteceu. Pode ser culpa sua ou não. Pode ser culpa do bottom ou não. Pode ser culpa de ambos ou não ser culpa de ninguém. Merda acontece. Mas você interrompeu a cena e partiu pro aftercare, o que é um bom sinal.
A pessoa pode - ou não - querer fazer uma cena com você novamente no futuro, por diversos motivos diferentes, mas, pelo menos na questão do consentimento, você sabe que não cometeu algum erro, ou se cometeu, tentou corrigir

No item 2-b, meu amigo, você fez bosta. Bosta grande. Errou feio, errou rude. Você quebrou a confiança da pessoa e, mesmo após a retirada do consentimento para a continuidade da prática (SAFEWORD), você continuou. 
Esta pessoa provavelmente nunca mais irá querer fazer uma cena com você.
E provavelmente todas as pessoas que ela conhece também não. 
E, de quebra, quem estiver assistindo a cena, também vai fugir de você como o 9 dedos foge da jaula.

Este consentimento perdido, com quase 100% de certeza jamais será recuperado. A confiança daquela pessoa em você foi pro espaço e o foguete não tem combustível nem pra dar uma pirueta. Então, não faça isso. Ou arque com as consequências.



Abuso

Hoje em dia, o conceito de abuso tem sido usado de maneira um tanto quanto leviana, mas vamos tentar botar os pingos nos is, pra podermos chegar a um ponto exato do que seria o abuso no BDSM.

Segundo o Dicionário Priberam:

a.bu.so
(latim abusus, -us)
substantivo masculino
1. Mau uso.
2. Uso excessivo. = EXCESSO
3. Desmando, desregramento.

a.bu.sar
(latim eclesiástico abusari)
verbo transitivo
1. Usar ou consumir de forma excessiva, errada ou inconveniente (ex.: ele abusa dos calmantes).
2. Ter relações sexuais com alguém sem o seu consentimento (ex.: foi acusado de abusar da rapariga).
3. [Brasil] Insultar.
4. Agir de forma a servir apenas os próprios interesses, mesmo se prejudicando outrem.


Bem, vimos que abuso seria, a grosso modo e, resumindo todas as definições (incluindo as do verbo abusar): ultrapassar ou fazer mau uso dos limites estabelecidos, podendo, ou não, levar a outra pessoa a sofrer algum prejuízo. 

Ora, sabemos que em todas as bases do BDSM (SSC, RACK, PRICK, RISCK. CCC), apenas uma coisa é comum e constante: CONSENTIMENTO. (Se você não sabe o que são as bases, leia AQUI)

Se fosse possível estabelecer alguma (ou algumas) regra universal do BDSM, certamente seria "Não deves falhar com o consentimento". Sério, pense em outras aí. Eu aposto com você, que, de alguma forma, tem relação com o consentimento. Se você pensar em uma que não tenha, me fala que eu escrevo aqui com seu nome.

...

...

...

Não conseguiu, né?

Pois bem, partindo do ponto de que o consentimento é "regra única" e é, como dito láááá no começo do texto "o ato de uma pessoa permitir que uma outra pessoa tenha ações ou relações de algum tipo com ela"; e que abuso é ultrapassar limites, a partir do momento em que alguém resolve parar a brincadeira, por QUALQUER motivo, caso o outro insista em continuar, ou pior, continue assim mesmo, forçando a barra, isso caracteriza um abuso. 

Quando limites impostos em negociação são ultrapassados sem que haja o desejo MÚTUO e o consentimento MÚTUO, isso caracteriza um abuso.

Um exemplo prático


O caso citado no começo do texto foi de um grande (talvez um dos 5 maiores nomes do shibari mundial). O cara é incrível e saca MUITO da técnica. Mas cometeu um erro gravíssimo. Durante um workshop, foi de dupla em dupla demonstrando uma amarração. 
Esta amarração específica, requer uma certa agressividade para que o objetivo dela seja atingido. Todos os participantes abordados por ele foram amarrados e soltos numa boa. A última pessoa, não. Ela, uma mulher lésbica, se sentiu sexualmente abusada durante a amarração por ter tido a cabeça deitada no colo dele (assim como foi feito com todos os outros participantes).

Esta amarração consiste em prender os braços da pessoa, com a corda passando por trás do pescoço, de modo que os braços fiquem completamente presos junto ao tórax, e a pessoa é derrubada e posta deitada no colo de quem a amarrou. O objetivo desta amarração é obter uma reação de fuga, como um início de Rape Play. Um Não-Consentimento Consensual.

Um debate gigantesco surgiu após ela recusar o pedido de desculpas dele e expor o caso online.

Onde foi que ele errou?

Apesar de todos os outros participantes estarem felizes e ansiosos por participarem ativamente em um workshop do mestre, em nenhum momento foi requisitado ou questionado a nenhum deles se topariam/queriam ser amarrados de qualquer forma que fosse. Apesar de todos terem topado e ficado satisfeitos, ele falhou ali.

Ela poderia ter topado e ficado feliz também? Poderia, claro. Mas ninguém teria se atentado para este detalhe do consentimento. 
E ela NÃO ficou nem um pouco feliz.

Como disse ali em cima, a reação esperada das pessoas à esta amarração é de luta e fuga. Como isto era esperado, ao se debater e tentar escapar, ninguém presumiu que houvesse incômodo, nem mesmo a parceira dela, que a conhece há anos, foi capaz de notar que havia algo de errado acontecendo ali. Muito menos o professor.

Muitos pontos foram levantados nas infinitas e acaloradas discussões nos fóruns, inclusive o de que ela DEVERIA ter dito claramente que não queria, já que foi a última da turma e viu o que tinha transcorrido até então, afinal, a segurança dela TAMBÉM é responsabilidade DELA.

Ainda assim, era de responsabilidade DELE questionar e pedir a autorização - dela e de todos os anteriores - para prosseguir com a amarração.

E qual o resultado disto tudo?
Por algum tempo, ele acabou desaparecendo do meio. Ameaças foram feitas, sugestões de que toda a escola de shibari e os ensinamentos oriundos desta escola fossem abandonados (o que seria, basicamente como apagar metade da história e das técnicas de shibari existentes), que ele fosse banido do meio, que não fosse mais chamado para eventos, workshops, aulas, filmagens e sessões de fotos. Em suma, que ele fosse completamente posto de lado.

Por diversos motivos, inclusive culturais, pode-se estabelecer uma certa "causa" para a falha dele, que ele se prontificou a avaliar e corrigir este problema em todas as interações a partir de então. 
No entanto, para boa parte da comunidade internacional de shibari, ele é um abusador e o dano e a mancha existentes sobre seu nome serão provavelmente irreparáveis.

Sacou o nível do problema?

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Escrever este texto foi bastante complexo. Me trouxe à mente a lembrança de inúmeras cenas que já fiz e, mesmo sabendo o que são cada uma das coisas citadas no texto, sabendo do que foi negociado, ainda assim, fica a pulga atrás da orelha: "Será que eu abusei do consentimento de alguém?", "Será que a atitude X que tive com fulana foi abusiva?", "Será que fiz aquilo do jeito certo?". 

Neste ponto, imagino como o tal mestre shibarista provavelmente se sentiu, após décadas de experiência internacional, com milhares de cenas públicas e privadas, tendo aprendido a praticar de um jeito, a interagir de um jeito, e um belo dia, descobre que, provavelmente, cometeu aquele erro em grande parte delas, sem que ninguém jamais o tivesse informado de que aquilo estava errado.

Pro bem ou pro mal, a situação serviu para que todos nós da comunidade nos atentássemos mais às nossas próprias interações e pudéssemos avaliar como agimos em cada uma delas. Nos desculparmos com as do passado, se possível, e prevenirmos a repetição do erro no presente e no futuro, tornando, assim, o meio BDSM um lugar mais seguro, divertido e prazeroso pra todo mundo gozar e ser feliz.


Beijo pra quem é de beijo, abraço pra quem é de abraço.
Nos vemos na próxima!












3 comentários:

  1. Bom dia Sr e obrigada por compartilhar mais esse conhecimento. Peço autorização para rebolgar no meu se o Sr assim o permitir e gostaria de uma pergunta que de modo nenhuma gostaria que fosse tomada como preconceituosa. O fato de ser lésbica pode ter influenciado na atitude dela de chamar de abuso?

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    1. Oi!
      Então... Acompanhando a infinita discussão no FetLife, em alguns momentos deu a entender que este teria sido um dos motivos. Excesso de politicagem (pq ela é uma pessoa bem envolvida em ativismos extremos desse tipo, aparentemente) uma certa noção de abuso um pouco mais ampla q o normal. Mas não só por isso. Ele, de fato, cometeu um erro grave, mas a repercussão que a coisa tomou foi muito maior do q deveria devido aos SJW correndo pra defender uma pessoa que não precisava de defesa... É bem complexo definir isso...

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